O que é o vento? Para o Capital, assim como as matas, a água e a terra, é uma mercadoria. Os serviços ecossistêmicos que garantem a vida na Terra são ignorados diante da voracidade des- trutiva como grandes corporações econômicas geram riqueza destruindo a Natureza.
Recortando apenas um exemplo, não sem razão, a percepção dos povos indígenas e de ancestralidade africana que tratam a natureza como algo sagrado, dotado de espírito, é ridicularizada diante dos alicerces da adoecida civilidade moderna, essencial- mente ecocida. Para esses povos ancestrais Vento é Espirito. Para o Capital, mais uma commoditie.
Este livro tratará do “Cárcere dos Ventos”, uma metáfora para mostrar como os ventos estão sendo apropriados dentro de uma lógica capitalista eco e etnocida. Tocando apenas uma ponta dos graves problemas que sopram com a recente instalação de grandes complexos eólicos nas Serras do Sertão, queremos mos- trar que não se trata de um modo de produção de energia limpa, mas que é parte de um casamento perverso entre Estado e Capital operado a partir de métodos sujos.
Estamos diante de uma tempestade de destruição causada pelos complexos eólicos que estão se instalando nas Serras do Sertão. Para ilustrar a natureza dessa tragédia, recortaremos, apenas, o cenário caótico protagonizado pela empresa de origem francesa Voltalia que, neste momento, está destruindo áreas da região de Canudos, na Bahia, rota de voo de uma das aves mais raras do mundo, a Arara-Azul-de-Lear (Anodorhynchus leari). São décadas tentando tirar esta espécie do risco de extinção, entretanto, à revelia da recomendação do Ministério Público da Bahia e de diversas frentes ambientais do Brasil e do mundo para parar as obras, esta empresa, contando com o apoio do estado baiano, segue em marcha com sua ambição biocida.
Outra espécie, já extinta na natureza, a Ararinha-azul (Cynaopsitta spixii), está no vendaval dos impactos dos complexos eólicos. Sendo endêmica de Curaçá, norte da Bahia, tem se tentado sua reintrodução no seu habitat natural. Quisera o destino que este ambiente, onde viveram as ararinhas azuis, hoje está tomado por paredões de torres eólicas – liquidificadores gigantes de matar pássaros e morcegos. Caso seja possível sua reintrodução, não temos dúvida, os exemplares livres voarão para a morte. Estas trágicas realidades das duas ararinhas do Sertão estão bem descritas no capítulo escrito por Alan Bonfim, que também aborda a morte dos morcegos, os maiores plantadores de florestas do Planeta.
Em longo prazo, a operacionalização dessas mais de 3 mil torres já instaladas nas nossas Serras, atuam como vetores que aceleram a morte dos rios, riachos e nascentes, bem como o processo de desertificação do Semiárido, haja vista, matarem os verdadeiros jardineiros da Caatinga que são as aves e os morcegos. Sem árvores não há água e, sem aves e morcegos, não há árvores. Sem tudo isso, não há gente.
Destacamos, embora o Brasil seja signatário da Convenção sobre Espécies Migratórias de Animais Selvagens, tendo assu- mido o compromisso de conciliar, se necessário, a exploração do potencial eólico com a preservação e conservação dessa parte da nossa biodiversidade, o que observamos é um desprezo total pela manutenção da avifauna e da quiropterofauna em nossa região. Como destaca Alan Bonfim no seu texto, estimativas médias de mortalidade anual nos EUA em turbinas eólicas quantificam as colisões variando entre 20.000 e 573.000 pássaros por ano. Não é à toa que estamos chamando essas torres de “liquidificadores gigantes de moer passarinhos”.
Essa discussão que trata da relação entre eólicas e biodiversidade, diríamos mais, com a sociobiodiversidade, é complementada no capítulo do Professor José Alves de Siqueira, focando-se mais no Boqueirão da Onça. As espécies de felinos que existem nessa Unida- de de Conservação da Caatinga, são espécies gravemente atingidas com a destruição dos ambientes naturais dos topos das serras. Como está descrito nesse capítulo, o Boqueirão da Onça apresenta uma elevada diversidade de mamíferos com 32 espécies incluindo Panthera onca (Linnaeus, 1758) (Onça-pintada), o maior felino das Américas, Puma concolor (Linnaeus, 1771) (Onça-parda) e Tolypeutes tricinctus (Linnaeus, 1758) (Tatu-bola) (CAMPOS et al., 2019) e espécies de aves ameaçadas de extinção como Anodorhynchus leari (Bonaparte, 1856) (Arara-azul-de-lear) (ICMBIO, 2017), e raras como Augas- tes lumachella (Lesson, 1838) (Beija-flor-de-gravatinha-vermelha) (SOUZA et al., 2009) e Neomorphus geoffroyi (Temminck, 1820) ( Ja-cu-estalo) (ROOS et al., 2012).
O dilema das comunidades tradicionais da Bahia frente aos impactos socioambientais causados pelas eólicas será bem discutido no capitulo “Terras Públicas, Comunidades Tradicionais e Corredores de Vento: Caminhos da Energia Eólica na Bahia”, de Carolina Ribeiro e Gilca Oliveira. Nele, observarão como as comunidades estão sendo usadas como joguetes do Capital Eólico com a conivência do Estado.
Como podem ver, no decorrer desse livro, é difícil imaginar a energia eólica como uma energia limpa nos moldes como está sendo efetivada na Bahia, no Brasil. O Capítulo de Flávio Barrero, que trata do Complexo Eólico de Campo Formoso, desnuda a forma como esses parques eólicos vêm se instalando e destruindo a biodiversidade e desrespeitando o modo tradicional da ocupação humana em nossas serras. Merece destaque, em seu texto, suas análises dos Inquéritos Civis do Ministério Público que, também, responsabiliza o órgão li- cenciador e fiscalizador do Estado, o INEMA, pelos crimes ambientais associados à implantação das torres eólicas no território baiano.
Não há lugar na Bahia onde essa destruição pelas eólicas não esteja em movimento. Como descreve Gislene Moreira Gomes, no seu capítulo “Caçadores de Sacis: O Redemoinho de Projetos Eólicos na Chapada”, a opção por este modelo de desenvolvimento, que estamos chamando de eco e etnocida, avança, ignorando a participação das pessoas, e está sendo forjado num silenciado “acordão” entre o Estado e o Capital Eólico.
À nossa equipe da Nova Cartografia Social do Brasil (Núcleo São Francisco), nos competiu pensar nessa Cartografia do Invisível, como os ventos estão sendo mapeados e entregues ao Capital Privado em detrimento de todos os sentidos ecossistêmicos na região das Serras do Sertão. Nossa intenção com esse texto é deixar claro que o Estado está semeando ventos e nós estamos colhendo as tempestades. Como escreve Edmar Conceição, no seu capítulo “A Luta Quixotesca nas Serras do Sertão”, como Dom Quixote, é como se estivéssemos lutando contra moinhos de ventos. Entretanto, estamos alertas, estamos lutando contra moedores de gente, da natureza. Estes devem ser detidos e responsabilizados!
Este livro é apenas um pequeno recorte da tragédia que chega com as eólicas num território já arrasado com grandes mineradoras e outros graves impactos socioambientais. Nesse momento da história, a Bahia está materializando a sentença de morte das nossas Serras, de suas matas, dos seus rios, riachos e nascentes e, como consequência, de sua gente. A nós do Salve as Serras cabe a luta, também, para tirar das prisões do Capital, nossos Sagrados Ventos.