No ano já quase esquecido de 2019, fomos acometidos por dois dos maiores desastres ambientais do século XXI: o rompimento da barragem B1 da mina Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, estado de Minas Gerais e pelo vazamento de petróleo cru que atingiu 3 mil quilômetros do litoral Nordeste e Sudeste, eventos acontecidos no Brasil. Ao final deste mesmo ano, dado que os impactos ambientais e, por conseguinte os impactos psicossociais, superavam as ações de reparação, notadamente no último caso, onde responsáveis ainda eram espectros, os pesquisadores dedicados ao entendimento das relações multitemporais e espaciais dos humanos com o seu habitat, que representa o foco da Ecologia Humana (EcoH), reuniram-se num esforço interdisciplinar, como bem defende a mesma EcoH, para produzir conhecimento científico de qualidade e trazer à tona aspectos que passamos a considerar como relevantes às ações de reparação e entendimento de diferentes tipos de vulnerabilidades sociais desnudadas por estas questões.
No início do desenvolvimento do projeto, a equipe debruçou-se sobre diferentes temáticas, desde a Teoria de Gaia, passando pela análise de armadilhas sociais em contexto de abandono das políticas públicas, chegando até à análise dos vazios legais sobre responsabilização penal e ambiental, no caso de dano à costa brasileira. Contudo, no decorrer da ideação do trabalho, fomos todos “engolidos” pela necessidade de paralisação de grande parte das atividades laborais, em função da pandemia causada pela doença chamada de COVID-19, provocada por um vírus. Teórico ser mais basal na cadeia da evolução ambiental. E nos pareceu que o derramamento de petróleo ficou infinitamente pequeno frente aos desdobramentos desta pandemia, e Brumadinho desapareceu... pelo menos dos meios que, diríamos, de informação de massa, incluindo-se aí, as redes sociais.
Ainda assim, seguimos com o caminho, mas o que passou a inquietar-nos foi o rumo devido a tomar, frente ao que agora se nos apresentava. A necessidade premente passou a ser, à luz das mesmas motivações iniciais, entender como havíamos chegado a este ponto, se tínhamos clareza sobre o porquê aqui chegamos e como daqui poderíamos seguir caminhando.
Pensando num público amplo e que continua ávido por conhecimento, em detrimento de compêndios de informação, tecemos uma linha, em rede, no sentido de fornecer subsídios
factuais para o entendimento acerca dos vazios estruturais e estruturantes forjados pela espécie humana, que foram capazes de romper a fronteira natural, entre esta e as demais que compõem a Biosfera. E é daí que Lições e Memórias de uma Pandemia nasce com o objetivo de visibilizar esta teia, não como uma armadilha, mas como o que ela poderia chegar a ser para uma aranha: um locus de descanso e nutrição. As lições podem ser extraídas do olhar sobre as refinadas estratégias de auto-predação da espécie humana,
com base em uma análise sobre a conexão entre esfacelamento do poder público (Políticas públicas e Projeções), a urgência sobre a memória da consciência de si e a consciência do todo (Reminiscências e Nevoeiro), desastres ecológicos-humanos (Agroecologia e Ecologia médica), e o exemplo de um caminho possível de convivência pacífica e inteligente com sua própria e única casa, através do entendimento da equilibrada e resiliente EcoH de povos e comunidades tradicionais (Povos indígenas e Direitos do
mar), para além do assustador número de casos de contágio e mortes pela COVID-19 que, de vidas humanas, por excesso de repetição de uma informação, passou a ser estatística.
Iramaia De Santana
Doutora em Biologia Marinha e Aquicultura