As águas sempre se cruzam nas voltas sem fim do Ayé.
Onde o até, corpo, se torna saber. Movimento em cada esquina, em cada curva, uma troca permanente, e em cada troca uma intersecção de Tempo. Circula a cosmovisão de nossos ancestrais.
Nas águas se navega além-mar e nos religamos às Áfricas. Somos diáspora. Somos movimento das águas. Somos as quartinhas transbordando saberes. Acionando responsabilidades, tradições, práticas e crenças.
Essa obra é um mergulho na profundeza de uma mulher-água, ora mansa, ora revolta, ora salobra, ora celeste.
Agarrando-lhe as mãos bailamos na fluidez de sua destreza na escrita que nos permite compartilhar uma visão translucida de realidade de quem tem como seu o universo pesquisado e, portanto, a responsabilidade para com os seus.
Nas nuances do cotidiano, explora o universo daqueles que professam sua fé no Candomblé, por Crianças e Adolescentes, e que versa o campo do Direito, este campo das Ciências Humanas tão construído a partir da moralida de eurocêntrica e racista.
Esta obra encerra em si uma oportunidade de (re)construir uma nova visão de Direito e de Humanidade, onde negras e negros e a sua religiosidade imanente pode conferir novos signos e paradigmas para a construção do campo do saber jurídico.
Aqui se apresenta um universo de signos e de saberes oriundos do universo de um Terreiro de Candomblé. Este espaço é nossa casa. Foge da relação maniqueísta entre público e privado. A ideia de comunidade, egbè, é de circulação. Construção de um espaço onde religião e tomadas de decisões coletivas se cruzam, assim como as águas de rio com o mar.
Nas esquinas do mundo caminhos se cruzam, odùs.
Como me ensina a velha egbomi de Òsàlá: “Tudo é o odù da gente!”, e em cada caminhar, em cada cruzamento: comunicação. Movimento. Èsù!!!
Este trabalho tem a relevância de colocar na pauta das Ciências Humanas a perspectiva do respeito às religiosidades de matriz africanas. Sobretudo a sua prática e o seu respeito diante da vida, da natureza, do outro, do futuro, da ancestralidade, da circularidade de saberes, dos cuidados, da formação holística.
Deve-se destacar o rigor com que esta obra trata o universo pesquisado, o trato epistemológico que coloca os sujeitos ativos no processo de construção e de análises, estes têm vez e têm voz.
A liberdade de professar a fé e seguir suas águas ancestrais do Candomblé é uma das maneiras de quebrar as algemas coloniais do racismo que assola a realidade brasileira.
As liberdades de quem vive a infância e a adolescência circulando no cotidiano do Candomblé, com direitos que se chocam com o racismo estrutural de nossa sociedade. O sentimento de acolhimento e de proteção que cerca o horizonte do Candomblé.
Essa obra é a busca pela proteção contra a violência racista que atinge os modos ancestrais dos Povos de religião afrobrasileiras. É preciso livrar as religiões de matriz afrobrasileira de uma visão que a criminaliza. E a fala de quem pertence, de quem vive e de quem é, se faz mister.
Esta obra é denúncia, é compromisso, e este é o lugar de fala de quem luta pela ampliação de liberdade e de combate a violência racista brasileira. Esta obra é sobretudo CORAGEM. De quem honra a ení, esteira, em que se deita, de quem honra os preceitos que atravessam seu corpo, de todos os Òrìsà que dançam em nossas vidas.
Que esta obra seja água nos limpando do racismo velado de cada dia e que nossas quartinhas estejam sempre a transbordar. Uma boa leitura, com muito àse e luta.
Mariana Bittencourt